10 de fevereiro de 2011

DEUS NA LITERATURA - O Nome e as formas (1) Texto: José Augusto Mourão

Um texto de José Augusto Mourão que retirei do site TriploV e que achei tão interessante e importante, que partilho aqui convosco. Este é o primeiro, e entretanto, colocarei os restantes.

 
"É a luz, é a claridade
é a treva,
é o inominado,
é o ignorado,
liberto do começo e do fim,
Pacificamente jaz,
nu, sem roupa.
Quem conhece a sua casa,
Ah! que sai dela!
E nos diga a sua forma" (1).

“Who has see the wind?” (Yoko Ono)

“Olhámo-nos como eu tinha ainda esperança; que coisa pérfida, má, a esperança.” (Blanchot , Morte Suspensa ed. 70, 83).

“O deus escondido é aquele que guarda puro o possível...só um referente abstracto de qualquer cognição pode gerar palavras de tal densidade” (Cacciari, 1990, 109).

“Je veux dire que l'art moderne a une tendance essentiellement démoniaque” (Bourdieu).

“Quand on colle une oreille contre la poitrine d'un dieu, on entend claquer ces veinules ce sont des embolies de ciel bleu.” (Jean-Michel Maulpoix, 1988, 44).

Combates
O combate da cultura contemporânea trava-se, a meu ver, em duas frentes que estão a convergir: o niilismo e a técnica (Ballard é a figura de culto da tecnocultura hoje, como Nietzsche foi a figura de culto do niilismo ontem e Blanchot é ainda a figura do niilismo hoje). O mundo é dominado pelo sexo, pela tecnociência e por niilismos de todas as cores (2). É sob esse prisma que Baudrillard encara o terrorismo, no seu livro Simulacres et Simulation como a resposta desesperada e tipicamente niilista à invasão da tecnocultura e à desertificação do “real”. A série Matrix ilustra perfeitamente o tema ciberpunk desta aliança: a utopia não se fará contra as máquinas, mas com elas e em ambiente virtual.
A filosofia crítica e as ciências tornaram o mundo vazio dos deuses que durante milénios pareceram habitá-lo. No mesmo lance tornaram também invisível o Deus do monoteísmo bíblico. O desossamento que toca o coração da existência moral e intelectual do Ocidente deixou um vazio imenso. A teologia entrou em erosão. A decomposição duma doutrina cristã de conjunto deixou a desordem, deixou um vazio em lugar das percepções essenciais de justiça social, do sentido da história humana, das relações entre o corpo e o espírito, do papel do saber na nossa conduta moral. A desconstrução tornou-se a “hermenêutica” da morte de Deus (3). Uma outra evidência: a arte moderna, marcada embora pela nostalgia do absoluto, levou a uma separação entre o mundo da arte e o da fé, destruindo o laço indefectível entre a palavra e a vida que era a herança que a teologia cristã legara à literatura, sem que, entretanto, a literatura se tenha tornado inteiramente profana (4). “Tudo se fez por meio d'Ele e sem Ele nada foi feito. N'Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo 1, 3). “A vida gera-se na palavra. A mediação entre a poesia e a vida é a língua. O poeta é aquele que na palavra gera a vida. A vida, que o poeta gera na palavra, é subtraída tanto ao vivido do indivíduo psicossomático como à indizibilidade biológica do género” (5).
Pode-se, à maneira de Blanchot, não admitir o outro da linguagem, a sua vibração de vertigem, senão no interior da linguagem. A literatura seria a tendência, o trabalho louco para criar o mundo dando-lhe a morte. Pode-se também falar, à maneira de Derrida, de um “devir teológico sem teologismo” “Le discours le plus athée et le plus irréligieux a toujours Dieu pour témoin en tant qu'il gage et engage une parole; il ne peut donc que devenir théologique, c'est-à-dire invoquer et convoquer Dieu, même s'il ne le nomme pas” (6). Como se deduz, uma tensão criativa percorre a relação teologia/literatura: ambas são uma questão de linguagem; ambas remetem para o catéchon da carta aos Tessalonicenses (2, 2, 7-8): algo refreia e retarda a chegada do Messias que, quando unificar os dois iões, destruirá a máquina poética precipitando-a no silêncio, ambas vivem da hesitação do som e do sentido, ambas encenam o drama-poesia (7).
Se “não há caminho por Cristo ou Dionísio” (M. G. Llansol), que caminho haverá ainda para Deus na arte e na literatura? Que guia? Se há um guia, não é decerto Aristóteles, “mestre daqueles que sabem”, mas Virgílio, “fonte/que põe a falar o mais largo rio”, que é dado por Beatriz a Dante para o guiar no seu périplo (8). Se há um guia, não será o saber, mas a palavra. Nem será mesmo S. Tomás, profusamente traduzido nos lugares do poema que dizem os mistérios divinos. A função do poeta era traduzir estes mistérios: operar o duplo transporte que transmuta os silogismos em canto, o raciocínio em celebração, a experiência em jubilatio.
A teologia está em processo há séculos. A escrita literária ri-se do saber (teológico ou outro). O facto é que nem só Dante prefere o poeta ao teólogo. Tal como Kierkegaard, Peirce detesta a teologia das Igrejas que expandiu sobre a terra o Odium theologicum mesmo reconhecendo que essa teologia desempenhou um papel benéfico na história da civilização (C.P. 6.449). As razões são simples - Deus não se revela à razão do homem. Não é tão pouco um objecto de fé (6.439). Existem “temas de importância vital” – e Deus é um deles (6.640) – cuja realidade é “percebida directamente” (6.436). De onde viria uma ideia de Deus se não da experiência directa? “Abramos o olhos – e o coração que é também um órgão de percepção – e vê-lo-emos.” (9). A sua religião não é subjectiva porque esta experiência não é emocional é um instinto que todos possuem (1.649, 6.496). Não é individual mas social: “Mesmo que comece por uma inspiração seminal individual, só floresce verdadeiramente numa grande Igreja co-extensiva a uma civilização” (6.443). A razão de ser de uma Igreja é dar aos homens uma vida mais ampla que as suas estreitas personalidades, uma vida enraizada na verdade do ser. Para tal deve ter como base e ponto de referência uma experiência pública determinada (5.498). A religião de Peirce não é pessimista. É por isso que não pode ser nem teológica nem subjectiva nem individual: a teologia fez esquecer à Igreja que era a Igreja de uma religião de amor. E Deus se imporá em toda a sua necessidade.

Notas
(1) Eckhart, Poema, estrofe VI. Tradução francesa de Alain de Libera, Arfuyen 1988, p. 15
(2) Veja-se o recente debate entre Vilaverde Cabral e Fernando Gil a propósito de Impasses . Ver também Wilfried Dickhoff, After Nihilism , Cambridge Univ. Press, 2000 .
(3) Mark C . Taylor, Erring A Postmodern A/theology, Chicago, University of C hicago Press , 1984.
(4) Bernard Sichère, Le Dieu des écrivains , Paris, Gallimard, 1999.
(5) Giorgio Agamben, La Fin du poème, Paris, Circé, 2002, p. 112.
(6) Marc Goldschmit, Jacques Derrida, une introduction, Pocket Le Découverte, 2003. p. 148.
(7) T. R. Wright, Theology and Literature, Basil Blackwell, 1988.
(8) Dante Alighieri, A Divina Co média, Cultrix, 1993, p. 128.
(9) “A Neglected Argument for the Reality of God” é a meditação que consiste em deixar que a mente contemple à vontade, sem intenção nem projecto, como jogando, os três universos da experiência, da primeiridade (ideias simples), a secundidade (coisas em bruto) e a terceiridade (as relações, o Signo). […]

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José Augusto Mourão é Professor Associado com Agregação da Universidade Nova de Lisboa. Presidente do ISTA (Instituto S. Tomas de Aquino), Director da Revista de Comunicação e Linguagens. Rege as cadeiras de Semiótica, E-textualidades e Hiperficção e Cultura no Departamento de Ciências da Comunicação. Livros publicados: A visão de Túndalo: em torno da semiótica das Visões (INIC, Lisboa, 1988); Sujeito, Paixão e Discurso. Trabalhos de Jesus (Vega, 1996); A sedução do real. Literatura e Semiótica (Vega, 1998); Ficção Interactiva. Para uma Poética do Hipertexto (Edições Universitárias Lusófonas, 2001); O fulgor é móvel - em torno da obra de Maria Gabriela Llansol (Roma, 2004); com Eduardo Franco: A influência de Joaquim de Flora na Cultura Portuguesa e Europeia (Roma, 2005); O Mundo e os Modos da Comunicação (Minerva, 2006); com Maria Augusta Babo: Semiótica. Genealogias e Cartografias (Minerva, 2007) . A Literatura electrónica (Vega, 2009).