Quando se conta uma história termina-se, geralmente, com a tão tendenciosa questão “Qual é a moral?” Jesus, depois de contar as Suas parábolas, nunca colocou esta questão aos seus ouvintes. Pô-la ao texto bíblico é assumi-lo como embalagem descartável de moralizações ou de espiritualizações, existindo o risco de o manipularmos na busca dessa moral. É necessário trocar, portanto, a pergunta “qual é a moral da história?” pela pergunta “qual é o Deus da história (ou do texto)?” (não é, afinal, Ele que queremos encontrar?) Qual é o Deus da parábola do Filho pródigo? Qual é o Deus do hino da carta aos Efésios? Qual é o Deus dos três primeiros capítulos de Oseias?
Tenho medo de partir para a viagem hercúlea que é a leitura de um texto bíblico alienada da questão – a única, “Quem digo eu que Tu és?” Tenho medo de partir amputada dos meus próprios sentidos... que luta desigual! Digo “o seu aspecto era como o de um relâmpago; e a sua túnica branca como a neve” e não vejo; digo “partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus” mas em nada toco…; digo “Escuta a minha voz, Ananias! O Senhor não te enviou…”, mas nada oiço; e digo “bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam” e nada dói. Aguardo antes pela “moral”, que talvez nunca chegará.
Ontem vi o jogo (7-0… sete que é o número da perfeição) durante uma reunião de trabalho, mas inicialmente, o computador não funcionava; e era de facto frustrante querer ver e não poder ver. E com a Bíblia a frustração é semelhante… Tenho olhos e não vejo, como se de repente tivesse cortado os “cabos” que a poderiam ligar à alma; tenho ouvidos e não oiço, como se não encontrasse onde lhe ligar “fones” que permitam “extrair-lhe” os sons de que é feita. Porque ela é cheia de imagens, de sabores, de toques, sensações ou emoções (no sentido inteligente da palavra), de movimentos, de cheiros e de sons... Do silêncio ao grito, da brisa suave ao estalar do fogo, da voz inconfundível do belo pastor ao enredo multicolor de vozes e línguas do Pentecostes. Se estivéssemos por dentro dos seus sons, perceberíamos que há momentos em que o texto bíblico é uma gritaria ou uma elevação de gemidos carregados e outros em que é um silêncio raso de adoração. Ouvem-se mulheres a chorar, brados de alegria, ranger de dentes e alguém que ri, harpas e rugidos de animais, ordens e preces. Mas emudeço as palavras da Palavra;, e, assim, mais que o risco de a tornar inofensiva a nível ético, há o risco de a tornar inofensiva a nível estético. Nada vejo, nada oiço, em nada toco… leio que o cego é curado, mas apenas ele o é. Algo terá de mudar na medula dos meus olhos, no coração dos ouvidos para a palavra dar a sua vida – aquela que é em abundância, em troca da minha; e em troca dos meus sentidos me possa dar os seus.
Esta questão da Bíblia como “locus sonorus” por mim emudecido, ou “locus sensibilis” por mim anestesiado, é apenas um pretexto para vos falar das vuvuzelas (quanto ao resto do título, “chave hermenêutica” é um termo que fica sempre bem em qualquer texto filosófico ou teológico, dando-lhe uma feição erudita.) Em alguns fins de tarde, pela janela, entra em minha casa o som longínquo das vuvuzelas. Eu aprecio-o muito; é grave, parece antigo, faz-me lembrar o som das baleias. É profundo, como se viesse do fundo do mar ou do fundo princípio da História. É a banda sonora perfeita para a paisagem urbana, generosa e laranja-cor-do-crepúsculo que vejo da janela. Mas é também uma banda sonora possível para o livro do Apocalipse, que é um livro muito sonoro e musical. É mesmo sinfónico – vários sons se cruzam, várias e diferentes vozes se entrelaçam orquestralmente e com sonoridades bélicas. Pode-se definir a vuvuzela como uma vertente pós-moderna da trombeta; ora a palavra “trombeta” aparece 11 vezes neste livro. Ouvi-las pelas ruas é uma forma de curar a tal surdez que me coloca doente ou incapaz ante este livro, em particular, mergulha-me dentro das suas sonoridades. É interessante como um objecto tão banal pode ser a chave sonora (ou talvez hermenêutica) para um texto bíblico. Ouvi-la da minha janela faz-me lembrar que Deus vem, que Deus vence. Decifra-me algumas facetas da Sua voz, da identidade da Sua vinda, da realidade da sua força. Faz-me colocar a questão “que Deus é esse do livro do Apocalipse?” e esboçar respostas ou ainda perguntas. É um vestígio anónimo da Sua glória que me tem visitado em alguns fins de tarde, pela janela…
PS – este é um texto “caseiro”, sem “qualidade” teológica ou científica; para a próxima espero melhorar. Não serve, por isso, de exemplo para os textos a serem postados neste blog; apenas o queria estrear.
3 comentários:
Um texto sobre a relação entre vuvuzelas e Bíblia até acabou por ser interessante como forma de lançar o blog. Responde ao desafio de uma teologia "prática", que influa na vida das pessoas. E há lá coisa mais prática, neste momento, do que uma vuvuzela?
Tem alguns pontos de reflexão interessantes, mesmo tendo muitas ligações que eu não faria (o meu "asco" pelas vuvuzelas não me permitiria alongar-me tanto a descrever a sua relação com o texto bíblico...).
Não sejas tola, Cátia: está muito bom, não sei se de profundidade teológica e filosófica, mas, seguramente, dentro do espírito do que é um blogue, como o vejo.
Beijinhos,
A profundidade teológica está presente, sem dúvida, este é um texto que tem o mérito de transformar um objecto de plástico que custa €1 num instrumento teológico (coisa que, sinceramente, não é para todos (pelo menos não é para mim)).
A profundidade filosófica, e ponhamos humor nisto, é dada pela expressão "chave hermenêutica".
Abraços.
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