O Abade Pambo, na hora da sua morte disse:
«Desde que cheguei a este deserto e construí uma cela que depois habitei,
não me lembro de alguma vez ter comido pão
sem primeiro havê-lo ganho com as minhas próprias mãos,
nem ter lamentado, até hoje, uma palavra dita.
Mas agora que me vou apresentar ao Senhor,
é como se nunca tivesse começado a servi-lo.»
Pambo, 8
Ultimamente tenho trabalhado nas Conferências sobre o Centenário da República cujos campos: religião, sociedade, cristianismo e política, estão bem patentes. Neste post, pretendo partilhar convosco algumas perguntas e pontos interessantes de reflexão que surgiram ao longo desse trabalho. E portanto, mais do que chegar a qualquer conclusão, espero deixar elementos de reflexão.
Numa das conferências, D. Manuel Clemente falava sobre a Primeira República referindo a certa altura uma muito badalada frase que se diz ser e não ser de Afonso Costa – Ministro da Justiça e dos Cultos (1911), grande responsável pela Lei da Separação entre a Igreja e o Estado, e personalidade dita por muitos como anti-católica fervorosa – a frase era algo como: “Com esta Lei da Separação a religião acabará em Portugal em duas gerações e assim acabará a principal causa das desgraças do país”!
Ora, isto é tão interessante como curioso, e hoje, alguns, como eu, até acham isto cómico. Sim, porque muitos são os que defendem que esta Lei de Separação foi um dos principais factores de reacendimento da chama do catolicismo em Portugal. Anos depois desta lei entrar em vigor, foi ver o alvoroço do catolicismo em Portugal que aumentou ainda mais, e anos depois deu-se uma implementação considerável da Acção Católica Nacional e também o borbulhar de movimentos e mais movimentos católicos. Parece que o feitiço se virou contra o feiticeiro! Mas é interessante verificar, ainda assim, como o catolicismo se vai modificando com o tempo, ajudando a que, em termos concretos e existênciais, a sua auto-compreensão no mundo se torne mais próxima da sua própria natureza. Por exemplo, neste caso da Primeira República, um dos resultados foi o da sua própria auto-compreensão, isto é, a autonomia da Igreja face ao Estado, e, como dizia D. Manuel Clemente nessa mesma conferência, “nunca aquela frase de Jesus: «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mt 22,21), foi tão utilizada como nos últimos dois séculos.”
E sabemos bem como o combate e o debate fazem com que o questionamento exista. Como surgiram algumas das mais importantes definições da Igreja senão através do combate com outras correntes religiosas, filosóficas, metafísicas?
Como estudante de teologia e leigo, dou por mim inserido no vasto mundo social, numa vivência acostumada e rodeada pela incompreensão por algo que sou e vivo. Incompreensão de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos que, ainda que não partilhem a minha fé, partilhamos amor, amizade, fraternidade. Digo incompreensão pois não creio que o desejo de muitos, numa óptica lúcida, seja a destruição de algo como Deus ou a Igreja, cuja imagem que têm é desconhecida. E digo lúcida para não referir aquela outra visão de Deus e da Igreja como uma espécie de teoria da conspiração mystique-gazeux à la Dan Brown que maioria das vezes não é senão um motivo de conversa de elevador (como falar do tempo).
Por outro lado, considero curioso como o interior do próprio ser-humano parece encontrar formas de uma auto-desresponsabilização, ou seja, acusar algo exterior a si mesmo para culpar as “desgraças do país” em que se vive, ou se se preferir, do mundo em que se vive, e porque não, da Igreja em que se vive. Não é por acaso que uns gostam de culpar o governo dos Estados Unidos, outros gostam de culpar o Sócrates, outros o Queiroz e outros gostam de apontar o dedo à Igreja!...
Assim, por exemplo, é bem interessante a teoria da Ética Partilhada de Enzo Bianchi. O próprio nome diz tudo, mas que em palavras breves consiste no trabalho de aprofundar e dialogar através da partilha do tesouro ético (ou moral) comum a todos, para assim se viver num ambiente de verdade, liberdade, justiça e amor, ou seja, em paz. Não obstante, um problema surge quando a indiferença pelo outro ou pela transcendência ocupa um lugar de presença ao invés de uma ausência. Mas, como afirmara o nosso caro Matos Ferreira, uma das grandes propostas ao crente hoje é “ajudar a ver”. Só que através das palavras de Jesus Cristo é interessante verificar que ser sal na terra ou luz do mundo ou fermento do pão, ou trabalhador da seara de trigo, quase que induz (ou induz mesmo) à conclusão de uma “missão” confiada a alguns e não a todos. Não falo em "agradar a gregos e a troianos", nem que a salvação é ou não “dada” a todos os homens, ou algo nestas linhas, refiro-me, isso sim e exactamente, ao pormenor de quantidade. Por exemplo, na mesma conferência D. Manuel refere um estudo muito interessante de Justino Maciel (Prof. Universitário). O estudo versa sobre S. Martinho de Dume (século VI), Frei Bartolomeu (século XVI) e umas Observações Sócio-Pastorais de Braga do século XX. Ao analisá-las, Maciel verificou que cada um destes tempos apontam para condições sócio-pastorais muito semelhantes, isto é, prática religiosa reduzida, observâncias religiosas reduzidas, superstições no dia-a-dia, magias, etc. No final, a conclusão a que Maciel chegou é que em termos de vivência do cristianismo do Povo de Deus (neste caso, de Braga), não existem grandes diferenças entre os séculos VI, XVI e XX!! Ou seja, estamos a falar de um espaço temporal de cerca de 1300 anos! No final desta observação D. Manuel Clemente termina por dizer: «esta história do pequeno rebanho se calhar é para levar a sério!...» Ora, isto é muito curioso.
Para terminar, um último ponto. Outra das conferências, cujo orador foi Rui Ramos (Prof. Universitário), achei interessante que ele referisse que após o 25 de Abril o então fundador do partido socialista, Mário Soares, não quis repetir alguns erros da Primeira República, nomeadamente, o de entrar em combate contra a Igreja, pois iria contra a própria consciência democrática que o país queria viver. E de facto, com o 25 de Abril, o combate contra a Igreja através do campo político, em grande medida, não existiu. Contudo, se bem que a liberdade ajudou à democracia, abertura e convivência entre crentes de várias confissões, religiões e não crentes, a falta de “oponentes” talvez tenha contribuído para algum esmorecimento do catolicismo pós-74. Ora, a meu ver, curiosamente, nos últimos tempos (talvez 15 anos) temos assistido a debates provenientes, por exemplo, das questões morais, cuja imagem ou tendência parece, muitas vezes, partir de uma vertente política de grande força como são as teorias político-económicas comunistas ou marxistas, e que, apesar de na memória do homem do século XXI não comparecerem visivelmente as consequências sociais de tais sistemas político-económicos, certo é que de maneira geral há um esvaziamento na moral e esta carece de semântica.
Ora, a meu ver, o interessante está aqui: face a tais “posições”, diríamos, “radicais”, observamos movimentos católicos que se mobilizam “contra”, dando aso a uma mobilização e um despertar raramente visto. À primeira vista, parece que encontram, face às investidas do exterior, uma razão de ser, e em certa medida, um sentido, que parecia não encontrarem ou estar adormecido no seu próprio interior se de fora nada os incomodasse. Há, então, uma nova questão. Porque estava desaparecido ou adormecido tal sentido? Ou, para ilustrar esta pergunta, deixo-vos com uma questão retirada de uma cena de Waking Life*:
- Existem dois tipos de sofredores: aqueles que sofrem da falta de vida e os que sofrem da abundância excessiva de vida. Eu sempre me posicionei na segunda categoria.
Quando se pensa nisso, quase todo comportamento e actividade humana são, essencialmente, nada diferentes do comportamento animal. As mais avançadas tecnologias e artefatos levam-nos, no máximo, ao nível do super-chimpanzé. E na verdade, o hiato entre Platão ou Nietzsche e o humano mediano é maior do que o que há entre o chimpanzé e o humano mediano.
O reino do verdadeiro espírito, o artista verdadeiro, o santo, o filósofo, é raramente alcançado.
Porquê tão poucos? Porque é que a História e a evolução não são histórias de progresso mas uma interminável e fútil adição de zeros?
Nenhum valor maior se desenvolveu...
Os gregos, há 3.000 anos, eram tão avançados quanto somos hoje. Quais são as barreiras que impedem as pessoas de alcançarem, minimamente, o seu verdadeiro potencial?
A resposta a isso pode ser encontrada em outra pergunta, que é:
Qual é a característica humana mais universal? O medo ou a preguiça?
* Filme realizado e argumentado por Richard Linklater, 2001